terça-feira, 5 de julho de 2011

Crônica - O anoitecer

  Janelas abertas que dão para o quintal. Olho lá fora, e não mais aparece o verde matizado com as frutinhas vermelhas da acerola. O véu da noite descerra uma imagem que não é mais aquela de horas atrás. O espaço florido, de antes, é agora uma sombra que ensaia a chegada das primeiras estrelas.
  Na rua, barulho de motos, trazendo de volta, as pessoas do trabalho. Carros buzinam cansados. Transeuntes passam nas calçadas, buscando o repouso que os espera.
  Cá dentro, ouço o pulsar do próprio coração em consonância com os pensamentos que me povoam a mente. O relógio tiquitaqueia como se me avisasse a implacabilidade do tempo. Contudo, a noite que se faz escura não consegue fazer-me medo. Este é um vento que sopra na impressão de quem não ouve  a voz da noite. Ela diz tudo sem, todavia, dizer nada. Revestida de mistérios, conquista sonhos, bem como anuncia boas vindas aos que lhe ouvem a música e lhe entendem as notas.
   A noite incita lembranças. E, assim, começo a lembrar-me de um doente mental que há mais de quarenta anos enchia de gritos a noite: - Lá vem um defunto aí, cê tem medo dele? Cê viu o defunto morto?
   E eu respondo que o defunto é ele que já se foi, deixando dentro da noite a magia de seus gritos, a graça de sua espontaneidade... o defunto não está morto, digo eu, pois viva é sua lembrança. Viva é a saudade. Vivo é o eco que insiste em atordoar-me os ouvidos da mente.
   A noite já se vai alta. Os ruídos, lá fora, morrem aos poucos como aquele doente mental que se despediu. E como a noite sempre faz, sai de cena.
   O anoitecer tem cheiro. Tem vida. Tem emoções. E só não sente tudo isso quem não tem olfato e paladar na alma.
   Anoitecer. Sempre anoitecer.

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